Notícia: “A ética Ubuntu simboliza perfeitamente o conceito de comunidade que construímos juntos, estudantes e professora”

“A ética Ubuntu simboliza perfeitamente o conceito de comunidade que construímos juntos, estudantes e professora”

Filosofia e cidadania sempre caminham juntas. E foi por meio delas que a professora Maria Isabel Gonçalves, do Colégio Estadual Rui Barbosa, em Boninal, na Bahia, criou o projeto pedagógico As Filosofias de minha avó: poetizando memórias para afirmar direitos, tornando-se uma das vencedoras do Prêmio Educador Nota 10.

Situada na Chapada Diamantina, região baiana caracterizada pelas maiores altitudes do nordeste brasileiro, de caatinga semiárida e flora serrana, a escola conta com jovens de comunidades rurais e quilombolas – 80% delas e deles, negros.

Inspirada por toda a ancestralidade africana que as vidas de suas e seus estudantes do 1º ao 3º ano do Ensino Médio trazem, Maria Isabel não hesitou em definir um caminho pedagógico que se desse pelo resgate daquela memória afrodescendente, conectada às filosofias africanas, ao pertencimento e à preservação de culturas.

Imagem de Maria, uma jovem mulher negra de cabelos compridos e cacheados, que está sentada lendo livros de maneira sorridente
Maria Isabel tem na filosofia africana uma aliada para trabalhar pertencimento e cidadania em sala de aula. (Foto: Nidiacris Ribeiro/Trupe Filmes)

Futura: Como surgiu a ideia de trabalhar a filosofia por meio da memória ancestral de estudantes de comunidades quilombolas?

Maria Isabel Gonçalves: Ao me encontrar nesse papel de professora de Filosofia para o Ensino Médio, foi se tornando cada vez mais claro o caminho pela experimentação enquanto método de ensino. Eu vi que precisava possibilitar à(ao) estudante o processo de buscar o conhecimento a partir de si mesmos, pelas questões que lhes tocavam, a partir de seu lugar de fala, de sua comunidade. Enquanto jovens de comunidades rurais e comunidades negras, afrodescendentes, é importante para elas e eles buscar as suas próprias questões filosóficas naqueles lugares de fala.

O projeto contemplou diversas comunidades rurais, pelos cenários das recordações dos relatos coletados. Dentre elas, 9 são quilombolas: Cutia, Conceição, Mulungu (Boninal/BA), Olhos D’água do Basílio, Vazante, Baixão, Lagoa do Baixão, Capão das Gamelas (Seabra/BA) e Machado (Piatã/BA).

“As memórias ancestrais são centrais nessa busca, nesse despertar da própria identidade”

Imagem de uma casa branca com uma das paredes ainda em tijolos à mostra em cima de uma pequena escadaria de concreto e em maio a um matagal
Registro feito pelo estudante Renan Gabriel (1º ano do Ensino Médio), que ilustra a paisagem do povoado de seus ancestrais em Vazante, comunidade quilombola próxima a Boninal – BA. (Foto: acervo pessoal)

Futura: O projeto “As Filosofias de minha avó: Poetizando memórias para afirmar direitos” aborda, dentre outros pontos, a importância da conscientização cidadã. Como foi o envolvimento das famílias com as atividades das(dos) estudantes?

Maria Isabel: Os avós demonstraram muita satisfação ao serem procurados para contarem suas histórias, e a história da própria comunidade. E, a partir de cada narrativa contada, o próprio sentido da sabedoria se revelava, pela visão distante de tudo o que foi vivido e aprendido em meio às extremas dificuldades.

As histórias que os avós contam retratam cenários de negação das mínimas condições para a sobrevivência. Os estudantes são tocados pelo valor dos direitos humanos fundamentais, na medida em que compreendem que todos eles foram negados no decorrer da história da própria família. E assim, uma consciência cidadã foi se formando, impulsionando-os para atuarem em favor dos seus.

“Pelos relatos, diversas questões surgiram, denunciando o abandono e a invisibilidade no tratamento dado às comunidades rurais”

Futura: Como foi o contato da turma com a filosofia Ubuntu? E como você estabeleceu pontes com outras linhas de pensamentos filosóficos?

Maria Isabel: No contexto de nossas comunidades afrodescendentes aqui da Chapada Diamantina, eu quis trazer à tona os significados da filosofia africana, numa proposta decolonial. Assim, a filosofia Bantu encontrou seu lugar para nos guiar nessa aventura do filosofar por inteiro.

A ética Ubuntu simboliza perfeitamente o conceito de comunidade que eu quis construir com elas e eles, que seria esse “Nós” contemplando tudo aquilo que nos constitui enquanto identidade: as pessoas, a cultura, as formas de organização, o espaço, a natureza. E engloba também o legado daquelas e daqueles que vieram antes, levando essa busca pelos fios das memórias. Por isso, a ética Ubuntu trouxe ampliações aos estudos da Filosofia da Memória, que eram centrais no projeto.

Uma pequena oca de pedra com uma portinhola em que só daria para alguém entrar se estivesse engatinhando
Os locais em que viveram os antepassados das e dos estudantes inspiraram muitas reflexões em sala de aula. (Foto: acervo pessoal)

Futura: Que critérios utilizou para a escolha dos elementos multimídia que explorou em sala de aula? Houve interação com outros componentes curriculares?

Maria Isabel: Nessa proposta de afirmar o direito à memória das comunidades, os diversos recursos de multimídia foram imprescindíveis. Os estudantes passaram a ser coletores de memórias a partir das possibilidades dos próprios celulares, gravando vídeos ou áudios dos relatos dos avós e outras pessoas da família e da comunidade. E ainda, fotografando as paisagens demarcadas em cada relato, para fazerem a edição de um pequeno documentário a ser apresentado em sala de aula.

Em cada momento, foi marcante a forte interação e o domínio que a turma demonstrou ter com esses recursos, utilizando-os das mais variadas formas para que o resultado fosse o melhor possível. A interdisciplinaridade também foi real em cada momento, tanto no olhar para os diversos aspectos da comunidade, quanto nas apresentações dos resultados em sala de aula.

“Nesse momento tão difícil, ainda mais para a população mais idosa, o projeto se abre para a continuação da partilha do afeto”

Futura: Em tempos de pandemia, por conta do novo coronavírus, que sugestões e dicas você daria para as(os) colegas que se veem diante do desafio de trabalhar a Filosofia de forma remota?

Maria Isabel: Quando fomos surpreendidos pela pandemia, pensei em algumas estratégias para continuar o vínculo com as turmas e engajá-los em atividades do filosofar. Para isso, é importante que aproveitemos os diversos recursos em aplicativos e redes sociais.

A 1ª atividade que pensei foi de fazermos uma descoberta da Filosofia como a incansável busca humana por respostas e constituição de sentido. Assim, elas e eles foram estimulados a construir uma pequena narrativa baseada na seguinte reflexão: “Por que não podemos fugir da Filosofia?”. A partir dali, recordaram suas próprias perguntas filosóficas formuladas desde a infância – e, posteriormente, postaram essas narrativas no Instagram.

Filosofia e cidadania

Para aprofundar a análise filosófica deste momento de pandemia e isolamento social, outra estratégia que pensei para engajá-los foi a de escreverem uma carta para elas e eles mesmos lerem no futuro. Inspirei-me em um trecho do filme Entre nós. A ideia é que os estudantes escrevam os aprendizados adquiridos nestes dias de isolamento, questionando a banalização do valor da vida e das relações humanas nas abordagens feitas pelos governos e pela imprensa durante o período da pandemia.

Um outro caminho possível é, claro, o próprio projeto As filosofias de minha avó. Os estudantes podem voltar o olhar para o interior de suas próprias famílias e procurarem pelo baú das recordações (objetos, cartas e fotos antigas).

“Os estudantes podem ser orientados a ligarem para seus avós, ouvirem suas histórias e escrevê-las em um caderninho de memórias, buscando conexões com esses seres humanos que, pela grande experiência com a vida, são, também, grandes na filosofia”

Imagem de uma menina estudado sobre filosofia em frente ao computador e escrevendo algo em uma folha
Apoena, folheto didático de Filosofia, organizado por professoras(es) da Chapada Diamantina durante a pandemia. (Foto: acervo pessoal)

Sobre o Prêmio Educador Nota 10

O Prêmio Educador Nota 10 foi criado em 1998 pela Fundação Victor Civita que, desde 2014, realiza a premiação em parceria com Abril, Globo e Fundação Roberto Marinho.

Reconhece e valoriza professores da Educação Infantil ao Ensino Médio e também coordenadores pedagógicos e gestores escolares de escolas públicas e privadas de todo o país.

O Prêmio tem o patrocínio da Fundação Lemann, SOMOS Educação e BDO, e o apoio da Nova Escola, Instituto Rodrigo Mendes e Unicef. Desde 2018, o Prêmio Educador Nota 10 é associado ao Global Teacher Prize, prêmio global de Educação.

Ao longo das últimas 22 edições, foram recebidos mais de 75 mil projetos, e foram premiados 241 educadores, entre professores e gestores escolares, que receberam aproximadamente R$ 2,6 milhões.

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