COP 26 e a decolonização da luta ambiental a partir de uma perspectiva jovem, negra e indígena
Compartilhar
Estava a caminho da faculdade, descendo a rua da minha avó em direção ao ponto de ônibus quando observei uma moça com um colete desses de fiscal. Ela mirava do outro lado da rua o horizonte do bairro, onde a paisagem predominante era de árvores em uma montanha que naquele momento se descobria entrecortada por barracos de uma ocupação recente. Curiosa perguntei à mulher o que faziam ali e ela me respondeu, me dando um choque no alto dos meus 19 anos, que estava ali fazendo um monitoramento dado que meu bairro tinha uma reserva de mata atlântica.
Como contei lá na primeira coluna, a visão que eu sempre tive sobre meu bairro antes de conhecer os movimentos de literatura marginal-periférica dentro dele foi a visão de “atraso”. Parte disso se relacionava ao fato dele ser extremamente rural, com mais árvores do que prédios ao meu redor. Essa revelação de uma reserva de mata atlântica bem ali ao meu lado me deixou reflexiva e confluiu com outros questionamentos surgiram ao longo dos últimos anos para mim. Crescendo em um contexto periférico, o que mais almejamos comumente é a ideia de “progresso”. Tem até gíria na quebrada sobre e essa ideia de desenvolvimento em nenhum momento se relaciona intencionalmente com a destruição do meio ambiente ou qualquer coisa do gênero: há uma busca inicial pela dignidade humana, pelo acesso a direitos básicos como moradia, saneamento, transporte, alimentação e por aí vai.
Especialmente na escuta dos saberes tradicionais de povos indígenas e quilombolas, fui substituindo o “desenvolvimento” e o “progresso” pela filosofia do bem-viver no meu vocabulário e valores. Um livro de Alberto Acosta, “O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos” fala bem dessa perspectiva, fazendo uma reconstrução histórica e mostrando como na Constituição do Equador de 2008 a Terra (ou Pachamama) foi assim como o povo, considerada sujeita de direitos. Outras obras como “Ideias para adiar o fim do mundo” de Ailton Krenak e “A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami” de Davi Kopenawa trazem desde as vozes originárias a reflexão importante sobre como a relação com o mundo nos parâmetros de um mundo branco, europeu e capitalista só nos levam ao fim de nós mesmes. Compreendendo a necessidade de se deixar de lado a divisão entre natureza e humanidade e resgatar a perspectiva de que somos uma unicidade.
Lentamente e felizmente, as vozes que são ouvidas e consideradas na construção dos rumos do mundo parecem estar mudando e se tornando mais diversas.

É bastante relevante perceber na COP26 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas) a expressividade presente de indígenas, quilombolas, pessoas negras e especialmente jovens partindo do Brasil. O discurso de Txai Suruí, jovem de 24 anos da etnia paiter-suruí de Rondônia, resumiu de modo emblemático a necessidade de agir no agora de modo coletivo para refrear os efeitos catastróficos das mudanças climáticas sobre o mundo como ele tem sido conduzido hoje.
Conversando com o ativista Marcelo Rocha, jovem negro de Mauá (SP), e acompanhando debates sobre as questões climáticas atreladas à interseccionalidade, é importante sublinhar a necessidade de que os debates sobre questões socioambientais considerem de modo estrutural como indígenas e pessoas negras estão há séculos vitimadas por uma expressão perversa do racismo que se estende também para o âmbito ambiental. Além do genocídio indígena em curso há séculos, populações quilombolas e remanescentes como a da Ilha da Maré na Baía de Todos os Santos enfrentam racismo ambiental de maneira pouco velada. Na ilha, com uma população predominantemente negra e pesqueira, a ocupação da Petrobrás leva hoje a doenças gravíssimas a partir da contaminação por substâncias químicas pesadas que estão na água da região. Dentre os inúmeros casos, uma adolescente de 13 anos habitante da ilha faleceu há anos atrás com câncer no ombro e complicações no fígado.
Se de maneira sistêmica e legalizada temos ataques como esses ao meio ambiente, à vida e ao futuro da existência de todes nós partindo de grandes corporações e do Estado, é importante refletir sobre as micro-práticas de reprodução dessas opressões. Não salvo dentro de contextos autoproclamados progressistas ainda se reproduzem lógicas de dominação, quando deveria prevalecer uma postura horizontal e diversa nas lutas por questões climáticas. Ainda que o cenário da COP26 seja visivelmente mais indígena, quilombola e negro, muitos passos precisam ser dados para garantir uma decolonização da luta ambiental. Se comida orgânica continua sendo um privilégio de poucos, se jovens ativistas climáticas negras como a ugandense Vanessa Nakate são cortadas de fotos na grande mídia, se populações negras vivem em territórios marcados por desastres climáticos como na costa dos EUA, ou na insegurança de morros como em favelas do Brasil, se o norte global continua decidindo os rumos do mundo inclusive no âmbito do ativismo em defesa do planeta, desse modo continuamos como Chico Mendes diria: sem consciência de classe, fazendo jardinagem ao invés de ecologia.

Jovens ganham centralidade nos últimos anos nesse debate, como com as Greves pelo Clima iniciadas por Greta Thunberg em 2018 que culminam no movimento global Fridays For Future, conclamando o deixar de ir à escola às sextas-feiras para protestar pelo direito ao futuro. Brasileires como Txai Suruí, Marcelo Rocha, Luan Torres, Ellen Monielle, entre tantes outres. Além de pequenos gigantes como Francisco Vera, colombiano que aos 11 anos já estremecia as estruturas retrógradas que corroboram com a destruição do planeta. Todes apontam para um mundo menos adultocêntrico (já que grande parte das pessoas adultas parecem mais preocupadas com a ilusão confortável do dinheiro do que com a vida), mais diverso e onde exista espaço para o bem-viver de todes.
Que essa tendência se mantenha e cada vez mais, para além da COP e de espaços de centralidade da discussão sobre o clima, possamos escutar as juventudes e suas soluções sobre a vida coletiva nesse planeta. Que jovens em bairros como o meu vejam e tenham desejo de reverenciar preservando reservas florestais de todo o mundo desde pequenes, tendo as ferramentas para tal. Que plantemos mais árvores na escola, que a gestação de um futuro onde a vida prevalece seja o maior objetivo de todes nós. Sem a juventude e os saberes originários, o futuro simplesmente não será!