Notícia: “A maioria dos estudantes não se reconhecia enquanto sujeitos negros”

“A maioria dos estudantes não se reconhecia enquanto sujeitos negros”

Cultura afro-brasileira nas escolas

Com um repertório que vai de Solano Trindade e Castro Alves às letras de rap dos Racionais MCs, Lidiane da Silva Lima criou um projeto sobre poesia e cultura afro-brasileira nas escolas, que mudou o olhar de jovens do 6º ao 9º anos da Escola Municipal EF Anna Silveira Pedreira, na periferia da cidade de São Paulo.

A professora de Língua Portuguesa decidiu partir de um olhar decolonial com o objetivo de desconstruir o imaginário estigmatizado sobre os povos e a cultura do continente africano. A partir desse projeto, os estudantes se aproximaram da escrita poética e contaram as próprias histórias, que foram reunidas no livro Eu também posso ser poeta!.

“Acredito que os poemas são capazes de provocar catarses, microrrevoluções subjetivas e alterar visões sobre si e o outro. Os estudantes emprestaram suas vozes para contar histórias há muito tempo silenciadas, inclusive as suas.”

Após cada leitura, os alunos se expressavam de maneiras performáticas com declamações, danças, reflexões, etc. Os estudantes também prepararam o Sarau Heranças Afro, escrevendo e reescrevendo poemas, debatendo traços de estilo dos diversos gêneros poéticos abordados em aula e refletindo sobre a variação linguística e sua conexão com a identidade e as relações de poder.

Imagem de uma mulher jovem, morena, de cabelos longos e cacheados, bem sorridente e em pé segurando uma folha de papel
Professora Lidiane da Silva Lima (Foto: Acervo Pessoal)

Futura: Como surgiu a ideia do projeto “Eu posso ser poeta!”?

Lidiane da Silva Lima: O projeto surge a partir da constatação empírica de que a maioria dos estudantes não se reconheciam enquanto sujeitos negros. Havia, por consequência, uma negação da sua negritude, ou mesmo uma ausência de conhecimento sobre ela. O projeto nasceu com o objetivo de que esses estudantes se apropriassem da própria história e de sua cultura, e se engajassem no processo de (re)construção da identidade negra, a fim de que tivessem orgulho do seu pertencimento étnico-racial. E mais: que estudantes não-negros também pudessem reconhecer a trajetória de luta dessas populações a quem o Estado sempre negou direitos, colocando-se ao lado delas na luta contra o racismo.

O suporte escolhido para deflagrar esses saberes foi a literatura, mais especificamente o estudo do gênero poema, que nos permitiu suprir muitas lacunas deixadas pela historiografia oficial, questionando a história única contada pelo colonizador. Permitiu-nos construir um repertório afro-perspectivado de uma história que estava ocultada. A partir disso, os estudantes foram convidados a darem seus primeiros passos no universo da poesia, apropriando-se da escrita e de saberes contra-hegemônicos para anunciarem suas existências para o/no mundo.

Uma estudante negra, criança, está em pé em frente a um mural apontando para uma foto neste. É um mural com história afro-brasileira
Projeto “Eu posso ser poeta!” (Foto: Acervo Pessoal)

Futura: Para você, qual a importância de aproximar a poesia da realidade dos estudantes?

LSL: A poesia dita canônica, produzida predominantemente por pessoas brancas, de uma outra classe social, dialoga conosco naquilo que temos de universal, enquanto seres humanos, mas não nos contempla em nossas especificidades, não dialoga com nossas vivências enquanto sujeitos periféricos, negros e subalternizados.

Nessa perspectiva, a literatura marginal, preta, periférica, está mais próxima das nossas subjetividades, dialoga diretamente com quem nós somos, com o que vivemos, atende aos nossos anseios de compreensão de nós mesmos e do mundo em que vivemos a partir de uma perspectiva afro e georreferenciada. Tenho proposto um diálogo entre elas, sem criar uma ideia de sobreposição ou de hierarquia, pelo contrário.

“Legitimar a poesia produzida por povos minoritários, cujos autores não estão na academia, é elevá-la ao mesmo patamar da literatura de gosto canônico. Contribui para a autoestima dos próprios estudantes, que passam a se enxergar em seus pares semelhantes e a ampliar as possibilidades de ocupar outros lugares não-marginalizados. Por exemplo, o de escritor.”

A literatura negra periférica apresenta “eus líricos”, personagens humanizados, empoderados. Isso também ajuda na criação desses outros devires mais positivos para pessoas negras e auxilia os estudantes brancos a enxergarem pessoas negras por uma outra chave que não seja a da estigmatização.

Imagem de uma pequena pilha de livros coloridos, sendo amarelo o que está no topo, está em cima de um banco de madeira suspenso por uma corrente

Futura: Como foi o processo de colocar o projeto em prática? E a recepção dos alunos?

LSL: Foi um processo longo, trabalhoso, que demandou estudo, pesquisa, engajamento de todos os sujeitos envolvidos. Queria falar-lhes sobre África, desconstruir um imaginário forjado pelo ocidente para justificar a escravidão, mas eu também não possuía esse conhecimento. Matriculei-me numa matéria na USP, no departamento Centro de Estudos Africanos – CEA, para poder ter repertório para mediar a construção desses saberes.

Fiz esse movimento o ano inteiro de estudo, pesquisa e transposição didática. Os estudantes foram muito receptivos aos estudos propostos, pois antes de iniciarmos o trabalho pedagógico em si, cuidei de motivá-los, de sensibilizá-los pra importância do nosso projeto, do quanto ele ambicionava ser revolucionário, transformador. Tínhamos um pacto que foi feito em um momento muito especial do projeto, de grande beleza e emoção; um momento de partilha de dores causadas pelo racismo sofrido pelos estudantes e do nosso desejo profundo de que nenhuma outra criança vivesse aquelas experiências, sobretudo no ambiente escolar.

Identidade

Futura: Você acredita que, ao participar do projeto, há uma mudança na maneira em que os estudantes reconhecem a si mesmos e suas histórias? 

LSL: Eu não tenho dúvida. As evidências de aprendizagem e de transformação são concretas e visíveis em suas estéticas negras afloradas, não mais disfarçadas e obliteradas. A identidade racial, antes negada, passa a ser celebrada em suas produções poéticas.

O aluno que, inicialmente, recusava-se  a escrever por acreditar não saber, já que havia e há um consenso de que saber escrever é dominar apenas uma variante da língua – a norma culta -,  agora compreende que pode conferir materialidade ao que sente e ao que pensa na variante da língua que ele eleger, fazendo escolhas estéticas e políticas. Tenho alunos não-negros que entendem na prática o que Ângela Davis vem nos ensinando:

“Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, compreendendo a si também como sujeito fundamental no processo de construção de uma sociedade mais justa e democrática.”

Uma adolescente negra de cabelos escuros, compridos e soltos está trajado calça jeans e casaco jeans aberto sobre uma blusa branca. Ela está sentada em um degrau de uma pequena escadaria de concreto que parece ser a entrada de um local amplo, pois ao fundo se nota uma área livre e bem verde

Futura: Quais referências você levou para a sala de aula para incentivar um olhar decolonial para o continente africano? Por onde você indicaria que estudantes começassem a pesquisa por esse repertório?

LSL: Uso como estratégia de ensino decolonial a apresentação de símbolos culturais outros que não os de origem branca e ocidental. Para apresentar-lhes o continente africano, primeiro, mostrei-lhes imagens sobre diversos países que integram o continente, queria que eles evidenciassem o imaginário racista que construíram sobre ele, que todos nós construímos, imaginário esse que reitera as teses de precariedade e ausência de saber. Na sequência, exponho-lhes a origem desses pensamentos, por quem e com qual fim foram produzidos.

Por fim, realizamos um estudo sobre arte africana Yorubá, lemos textos de Solano Trindade e Sérgio Vaz, ouvimos canções do bloco afro Ilê Ayê. O objetivo é pensar de que forma esses outros símbolos culturais nos contam uma outra história sobre o continente africano, produzimos então, uma antítese, para depois construirmos juntos uma nova síntese. Então, indico que os estudantes se apropriem da arte, literatura, história e cultura africanas e afro-brasileiras, a fim de que ampliem a sua cosmovisão sobre o mundo, sobre as pessoas, existências e modos de viver que são plurais e todos igualmente legítimos. 

Futura: Qual a importância da representatividade, dos alunos conhecerem autores e professores negros, mulheres e LGBTQI+?

LSL: Vivemos numa sociedade hierarquizada por raça, gênero, classe social, sexo, em que um determinado grupo tem historicamente se afirmado como mais humano do que os demais. Esse modelo de sociedade é excludente, não atende a todos e não garante que todos tenham uma existência plena de direitos. A manutenção desse status quo só interessa à classe dominante, aos egoístas que dele se beneficiam.

“Como professora de escola pública, que serve aos filhos da classe operária deste país, tenho compromisso em promover uma educação que seja crítica e libertária, emancipatória. Então minha prática pedagógica é atravessada pelo suscitar dessas questões nos estudantes. Sendo assim, da mesma forma, trago pro centro das aulas autores e artistas negras e negros, periféricos.”

Também apresento a elas e eles intelectuais indígenas, mulheres, e venho me apropriando com muito interesse da literatura produzida pela população LGBTQI+, para que juntos questionemos as estruturas de uma sociedade racista, classista, machista e lgbtqi+fóbica, e comecemos a construir um outro futuro em que haja a universalização da cidadania plena de todas as identidades.

Uma adolescente negra está em pé, segurando um microfone com a mão esquerda e parece estar falando no momento da foto. Ao fundo, há pessoas sentadas observando a menina
Projeto “Eu posso ser poeta!”(Foto: Acervo Pessoal)

Futura: Em tempos de pandemia, por conta do novo coronavírus, que sugestões e dicas você daria para as(os) colegas que se veem diante do desafio de trabalhar a Língua Portuguesa de forma remota?

LSL: A desigualdade social existente anterior à pandemia acentua-se com ela, determinando quem pode dar continuidade aos estudos a distância e quem terá o processo de ensino-aprendizagem comprometido. Esse é um dos maiores desafios que enfrentei nesses últimos 14 anos de profissão. Difícil se entusiasmar com este cenário de exceção. A sensação que tenho é que contribuo no aprofundamento da desigualdade entre eles e que não oportunizo as mesmas chances de aprendizagem.

Apesar de me sentir angustiada com a exclusão da maioria dos estudantes do processo educacional, como professora engajada que sou, senti a necessidade de continuar realizando, produzindo algo com estudantes que tivessem possibilidade de acesso à internet, até como subterfúgio para não adoecermos e continuarmos vendo sentido em nossos estudos, trabalhos – eu enquanto professora e eles enquanto estudantes.

Tive uma ótima experiência no primeiro semestre, em que realizamos competição de poesia falada – Slam. Apesar do termo “competição”, que só serve pra dar um caráter dinâmico e envolvente às apresentações, todos nós sabemos que quem vence sempre é a poesia, é a oportunidade de exercermos a escuta colaborativa e o direito de fala. Agora, no 2º semestre, estamos bastante envolvidos no estudo do gênero Debate regrado (on-line).

Com base nessas experiências, sugiro que escolhamos gêneros textuais híbridos que, por sua natureza, são facilmente adaptados à internet. Tenho trabalhado de forma coletiva e articulada com outros componentes curriculares. Os estudantes lidam bem com tecnologia, têm tido bastante autonomia na criação, participação, divulgação dos eventos que vamos criando.

“Quando o estudante percebe o envolvimento de mais professores que se voltam para a construção coletiva de saberes, eles também se engajam mais.” 

Sobre o Prêmio Educador Nota 10

O Prêmio Educador Nota 10 foi criado em 1998 pela Fundação Victor Civita que, desde 2014, realiza a premiação em parceria com Abril, Globo e Fundação Roberto Marinho.

Reconhece e valoriza professores da Educação Infantil ao Ensino Médio e também coordenadores pedagógicos e gestores escolares de escolas públicas e privadas de todo o país.

O Prêmio tem o patrocínio da Fundação Lemann, SOMOS Educação e BDO, e o apoio da Nova Escola, Instituto Rodrigo Mendes e Unicef. Desde 2018, o Prêmio Educador Nota 10 é associado ao Global Teacher Prize, prêmio global de Educação.

Ao longo das últimas 22 edições, foram recebidos mais de 75 mil projetos, e foram premiados 241 educadores, entre professores e gestores escolares, que receberam aproximadamente R$ 2,6 milhões.

Acesse os conteúdos Futura

Na TV:

Não perca a programação do Futura na sua TV. Você pode conferir nas principais operadoras do país pelos seguintes canais:

Sky – 434 HD e 34
Net e Claro TV – 534 HD e 34
Vivo – 68HD e 24 fibra ótica
Oi TV – 35

Na web:

Globoplay
Site do Futura
Facebook
Youtube
Tik Tok
Instagram
Twitter

Ajude o Telecurso a evoluir

O que você achou desse conteúdo?