Notícia: Autocuidado e o combate à violência sexual contra crianças

Autocuidado e o combate à violência sexual contra crianças

Como preparar crianças e adolescentes para identificar os diversos tipos de violências?


Em agosto de 2020, uma criança de 10 anos, que sofria violência sexual desde os 6, engravidou do seu abusador, o próprio tio. Como se não bastasse toda a violência física e psicológica sofrida ao longo desses anos, ela ainda teve que lutar na Justiça por um direito garantido em lei: a interrupção da gravidez em casos de estupro ou quando apresentar riscos à saúde da gestante.

Após conseguir autorização para realizar o aborto, uma nova violação aos seus direitos: os dados com informações sigilosas sobre o local em que a criança iria realizar o procedimento foram divulgados, infringindo o artigo 17 do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). O hospital em que a criança estava internada foi cercado de manifestantes que a pressionavam para ela não realizar o aborto, ainda que tenha sido autorizado pela Justiça.

51% dos casos de violência sexual infantil são contra crianças entre 1 a 5 anos de idade

Infelizmente, casos de violência como esse não são exceção no nosso país. A cada 15 minutos, 1 criança ou adolescente é vítima de violência e o abuso costuma ocorrer dentro da própria casa, um crime cometido, principalmente, por parentes. 51% dos casos de violência sexual infantil são contra crianças entre 1 a 5 anos de idade, de acordo com dados do Ministério da Saúde.

Os dados estarrecedores servem para mostrar a urgência do debate sobre Educação Sexual nas escolas, no núcleo familiar e em todos os espaços de convívio social da criança. A Educação Sexual – entendida como um conjunto de orientações de como cuidar do corpo, da higiene pessoal e como entender as trocas afetivas – é um passo imprescindível para o autocuidado e proteção das crianças e adolescentes que, munidos de informação, são mais capazes de dizer “não”, evitar possíveis abusos e, até mesmo, relatar violências ocorridas.

Crescer Sem Violência

Em parceria com o Unicef e a Childhood Brasil, o Futura desenvolveu o projeto Crescer Sem Violência, que tem como objetivo disseminar informações de qualidade e metodologias para enfrentamento deste tema de modo informativo, atraente e sem expor crianças e adolescentes.

Uma imagem animada de um pai dando banho em um bebê e uma outra criança tomando banho em uma banheira, também sob supervisão do pai

Para conversar um pouco sobre cuidado e autoproteção de crianças e adolescentes, a coluna Futura & Educação conversou com Itamar Gonçalves, gerente de Advocacy da Childhood Brasil.

Futura: Muitas vezes, quando se fala em educação sexual, muita gente pensa logo no ato em si. Afinal, qual a diferença entre os termos “sexualidade” e “sexo”?

Itamar Batista: A sexualidade nasce e morre com a gente. Ainda que uma pessoa nunca tenha feito sexo, ela é um ser sexual. A sexualidade é parte do nosso desenvolvimento enquanto seres humanos. Desde a relação afetiva que temos com as nossas mães assim que nascemos, quando começamos a colocar o dedo do pé na boca e a descobrir o nosso próprio corpo. Tudo isso diz respeito a sexualidade.

A sexualidade envolve questão de corpo, respeito ao outro, respeito ao parceiro e é um passo fundamental para abordar a questão com as crianças do não se deixar abusar. Explicar o que é um toque invasivo, quais são as partes intimas do corpo da criança que não devem ser tocadas sem a autorização delas e trabalhar as noções de segurança.

“A sexualidade é parte do nosso desenvolvimento enquanto seres humanos.”

Tão importante quanto ensinar a criança a não brincar com o fogo, a ficar atenta com os perigos na cozinha, a não mexer com facas, por exemplo, é falar sobre os cuidados sexuais e a educação sexual. Os cuidados domésticos são tão importantes quanto os cuidados sexuais.

Imagem animada de uma mãe negra ajoelhada olhando para a filha bebê, que está nua e sorridente olhando para a mãe

Futura: Quando começar a falar sobre sexualidade com o(a) filho(a)? Existe uma idade ideal?

IB: No primeiro momento, precisamos ensinar as crianças sobre o autoconhecimento do próprio corpo, nomear as partes do corpo, inclusive as partes íntimas. E depois, é importante dar as noções de quais partes do corpo são íntimas, quais as pessoas podem tocar – e em quais as situações – e quais não podem. É importante deixar claro para as crianças que elas têm o direito de dizer não para um adulto que possa fazê-la se sentir desconfortável, não precisa ter vergonha.

Foto de Itamar Batista, o homem entrevistado na matéria. Ele aparenta ter cerca de 50 anos, tem cavanhaque grisalho e está de camisa social branca e paletó aberto
Itamar Batista, gerente de Advocacy na Childhood Brasil, fala sobre a importação da informação e educação para combater os diferentes tipos de violência contra crianças no Brasil. (Foto: Acervo Pessoal)

Já para falar de sexo, é importante saber o grau de desenvolvimento da criança, o que ela já sabe sobre o tema. Se você encontrar uma criança com material pornográfico, não adianta apenas tirar o material das mãos dela e dizer que é proibido. É preciso dizer que é um conteúdo para adultos, não apropriado para crianças. Também é importante saber como ela teve acesso e conhecimento sobre esse conteúdo.

“É importante deixar claro para as crianças que elas têm o direito de dizer não para um adulto que possa fazê-la se sentir desconfortável.”

Assista agora o episódio do interprograma ‘Que Corpo É Esse?: O direito de dizer não!”

Imagem no formato de animação de uma senhora que parece ser uma avó à frente de uma menininha, que está piscando para a vó e querendo brincar

Se for um(a) adolescente, os pais podem falar sobre DSTs, gravidez e relação sexual. Os dados mostram que as crianças que aprendem sobre a educação sexual em casa são aquelas que iniciam mais tardiamente as relações sexuais.

Os pais precisam abandonar esse tabu e terem consciência de que se eles não falarem sobre educação sexual com seus filhos, eles terão conhecimento pela indústria pornográfica. A educação sexual do menino passa pela pornografia, que coloca a mulher em que na condição de objeto. Já as mulheres são reprimidas, vulnerabilizadas e, muitas vezes, educadas para não sentirem prazer.

Futura: É muito comum os adultos designarem apelidos para se referir às partes íntimas das crianças. Isso é o indicado?

IB: Em cada região do Brasil, são utilizados nomes específicos para designar determinadas partes do corpo. O que precisamos que é essa criança use os termos regionalmente conhecidos para designar as partes íntimas. O importante é que não seja somente um código da família, mas algo comum na comunidade. Desse modo, caso isso vaze para professores e outros adultos, todo mundo vai entender o que a criança está falando. Por isso que é importante ensinar como nomear as partes do corpo, inclusive para a própria criança poder fazer a denúncia em caso de violência.

Futura: Por que a educação sexual é importante de se aprender na escola?

IB: A escola é um dos espaços onde mais se revela a violência cometida contra crianças e adolescentes. Devemos fazer um trabalho em conjunto tanto na educação formal quanto na família.

É preciso que todos estejam conscientes de que a violência é um crime e o adulto tem um papel de limite. Precisamos parar com esses mitos e justificativas que certos adultos dizem como “Eu não tenho culpa! Ela era um adolescente e ela me assediou”.

“Precisamos parar com esses mitos que certos adultos usam como ‘Eu não tenho culpa! Ela era um adolescente e ela me assediou’.”

Toda escola deveria ter um protocolo para receber esse tipo de informação, deveria saber lidar com a criança que faz uma revelação de que sofreu algum tipo de violência. A criança deve fazer a narrativa e o adulto responsável deve dizer para ela qual vai ser o fluxo de atendimento, deixando claro que é preciso levar esse tipo de revelação adiante.

Futura: Qual é o papel da escola em falar sobre sexualidade, um tema que muitas famílias consideram ser um assunto privado?

IB: A escola enquanto espaço educativo deve ser parte da formação stricto sensu. Especialmente no Ensino Fundamental, é comum que as crianças se masturbem, é uma fase de descoberta em que elas estão descobrindo o próprio corpo, se tocando.

Muitas vezes, o(a) professor(a) ou adulto responsável pelo cuidado daquela criança na escola vai dizer que isso é “feio”. E esse tipo de censura não adianta. É preciso aproveitar a oportunidade para explicar sobre prazer e porque a criança tem um espaço privado e o que ela pode compartilhar no espaço público. Nós, adultos, já temos muitos elementos para conseguir trabalhar sobre isso com as crianças de forma informativa e não ditatorial ou agressiva.

Futura: Educação sexual vai além das explicações sobre o aparelho reprodutivo nas aulas de biologia, certo? Afinal, o que é educação sexual?

IB: O MEC tem um caderno ótimo que fala sobre gênero e papéis sociais que vai desmistifica a questão cultural da própria sociedade machista, aborda questões sobre a diversidade e raça, questões que são importantes debater com os adolescentes.

Querendo ou não, a indústria da pornografia vai chegar ao seu filho, neto ou sobrinho. Por isso, é importante que se tenha um diálogo franco e honesto com as crianças sobre sexualidade. É importante que os pais tenham consciência de que a criança não é um objeto daquela família, mas é sim um objeto de direito que deve ser respeitada.

Precisamos reinventar a noção e o conceito de masculinidade existente na nossa sociedade. Falar sobre sexualidade vai muito além de explicar o funcionamento de um aparelho reprodutivo, é explicar sobre o desejo, sobre dar e receber afeto, carícias, é falar sobre autoestima, além de estabelecer limites do que se gosta e o que não se gosta e respeitar o direito do outro de dizer não.

Imagem no formato de animação de um jovem casal de adolescentes sentados lado a lado em uma praça. Eles estão se olhando demonstrando timidez e interesse. Parecem apaixonados

Futura: Qual o “preço” ou consequência da desinformação?

IB: A consequência infelizmente fica para criança. São esses números absurdos que temos sobre violência sexual infantil que, muitas vezes, poderiam ser evitados se ela dissesse não. Em nossa sociedade, há a perpetuação de modelos machistas reproduzidos pela indústria pornográfica. E esse conteúdo fala sobre sexualidade da pior forma possível: corpos sempre sarados, o ato sexual parece prazeroso e a mulher é colocada como objeto, sem desejo, existindo apenas para satisfazer o homem.

“Precisamos reinventar a noção e o conceito de masculinidade existente na nossa sociedade.”

Além isso, a outra consequência é a perpetuação da violência sexual contra as crianças que nem sabem o que está acontecendo com elas. Muitas crianças, vítimas de violência sexual, vão se sentir culpadas por anos e só bem mais tarde, provavelmente na vida adulta, vão descobrir que foram vítimas da violência. E pode ter dificuldade de se relacionar com o outro, prejuízos em toda a sua vida.

Existe um silêncio sobre esse tema, que ainda é considerado um tabu. Não é à toa que reduzimos todos os indicadores de violência, menos da violência sexual contra crianças.

Futura: Como denunciar?

IB.: A denuncia pode ser feita de forma anônima através do Disque 100. A denúncia passa por um processo de averiguação até que a delegacia, o Ministério Público e o Conselho Tutelar sejam comunicados. O Disque 100 funciona 24h de forma gratuita e as ligações podem ser feitas através de telefone fixo ou celular.

O 180 encaminha denúncias de Direitos Humanos de violências contra as mulheres. Outra forma, é mandar a denúncia via online através do site https://ouvidoria.mdh.gov.br/.

Assista agora o episódio do interprograma “Que Abuso é esse?” que aborda as etapas da denúncia.

É importante que todos os adultos saibam identificar o que é uma violência e como ajudar. É importante que a criança fale com um adulto que ela se sinta mais confortável e acolhida. Muitas vezes, em 90% dos casos, não há evidencia material da violência sexual infantil. Por isso, muitas vezes, a criança que faz esse tipo de revelação é desacreditada dentro da própria família, o que torna a denúncia ainda mais dolorosa para ela. Dificilmente, uma criança mente a respeito da questão do sexo e da relação em si.

A criança passa por um depoimento especial em que ela é entrevista por uma entrevistadora, que segue o protocolo de entrevista forense, em que vai se ouvir os relatos da criança. As crianças passam por esse tipo de entrevista e, em 80% dos casos, consegue se responsabilizar o agressor. A escuta passa a ser a partir dos 4 anos.

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