Artigo: Para evitar um futuro indigesto, mude a rota dos sistemas alimentares

Para evitar um futuro indigesto, mude a rota dos sistemas alimentares

Era só um dia frio regado a um modesto caldo de mandioca na casa de amigos em Minas Gerais. Mas, aquelas colheradas alterariam definitivamente minha relação com a comida. Sem saber, junto com a mandioca, ingeri uma generosa quantidade de torresmo que, após lento cozimento, se fundiu ao caldo sem deixar rastro. Horas depois, meu organismo rejeitava agressivamente o excesso de gordura animal. A madrugada em claro foi assaltada por um turbilhão de perguntas: por que já não consigo mais identificar os ingredientes que estou ingerindo? por que não procuro saber de onde eles vêm? estou atenta a seus efeitos sobre a saúde e o ambiente? Algo precisava mudar e rápido, começando por mim.  

Há 20 anos, optei por uma dieta vegetariana. Tudo começou como uma questão de saúde pessoal, mas foi gradativamente se convertendo em princípio ecológico e ético. A abolição da carne é só uma dimensão da mudança. A nova dieta repercutiu nos interesses profissionais, orientou novas leituras e aprendizagens sobre os alimentos, interferiu nas preferências de consumo e até no lazer. Curiosamente, evito falar de regime alimentar à mesa (oops!).

Embora haja um crescente interesse por pautas ligadas à alimentação sustentável, saudável e livre de maus tratos aos animais, considero essencial respeitar as escolhas individuais quando o papo é comida. Ser vegetariana exige disciplina, conexão com a terra e atenção à saúde, que monitoro diligentemente.   

Desde já, é bom deixar claro: meu propósito não é defender o vegetarianismo ou nenhuma corrente dietética em particular. Mas, fazer um chamado às pessoas que ficam indignadas com mais de 100 milhões de brasileiros que vivem a insegurança alimentar, sendo que 19 milhões sofrem de fome aguda. Nosso bem-estar pessoal não pode se divorciar da saúde da cadeia alimentar da qual fazemos parte, agravando as desigualdades.

Um prato com tomates, temperos vereds e outras comidas em tons de amarelo e marrom.
Foto: Valeria Boltneva.

Embora a fome no mundo estivesse em regressão nas últimas décadas, a Covid-19 expôs a fragilidade dos sistemas alimentares a choques e tem forçado as pessoas a pensarem na urgência de uma transição para sistemas alimentares mais resilientes, equitativos e de baixo carbono. Devemos aproveitar esta oportunidade. Mas, quais são as tendências desta transição? Que mentalidades e projetos estão em jogo?

Durante um evento Ashoka Changemaker Summit 2021, que está em curso até 2/12, o engenheiro agrônomo e diretor da SOS Mata Atlântica, Luis Fernando Guedes Pinto, resumiu as três principais tendências da produção de alimentos no Brasil. A primeira, segundo ele, é a manutenção do sistema agroindustrial dominante, com o aprimoramento tecnológico, adicionando precisão, coleta de dados, inteligência artificial, robôs, drones e outros dispositivos para maior controle da produtividade.  

Os incrementos de tecnologia poderão gerar uma redução no impacto ambiental dos grandes produtores rurais. Porém, este caminho replica o mesmo paradigma de commodities, concentração de terra e insumos poluentes, que estão na origem dos principais problemas socioambientais ocasionados pela produção industrial de alimentos. Ainda deixa de contabilizar os reais custos dos alimentos quando há danos ambientais ou sociais. Por exemplo, criando um descompasso entre quem polui solos e rios, aproveitando-se de uma legislação permissiva a agrotóxicos altamente perigosos, e quem paga pelas consequências dessa poluição, como trabalhadores e pequenos produtores rurais, polarizadores e cursos d’água expostos a grandes quantidades dos químicos.  

Os sistemas agroecológicos e regenerativos de agricultura representam uma alternativa a essa trajetória. O princípio desta segunda tendência é converter novamente a produção de alimentos em um processo biológico, restaurando o solo, os rios, a diversidade de espécies e produzindo alimentos seguros, livres de pesticidas e transgênicos. Não se trata de utopia.

Considere que no Brasil, de acordo com o Censo Agropecuário de 2017, duas em cada três pessoas ocupadas no campo trabalham na agricultura familiar, em pequenas propriedades, vocacionadas à adoção de práticas agroecológicas. Elas produzem a maioria dos alimentos vendidos em mercados locais que constituem a cesta básica dos brasileiros, mas ocupam apenas 23% da área total da produção rural. O predomínio da agroecologia representa uma real mudança de paradigma, com efeitos sociais, econômicos e ambientais que beneficiam a todos. Mas, acelerar essa transição é um desafio, a começar pelos investimentos, que são desproporcionalmente menores para pesquisas e assistência técnica destinadas à métodos de restauração da saúde dos solos quando comparados aos recursos aplicados no melhoramento genético de commodities.

Duas mulheres trabalham na coleita em um local com plantas verdes.
No Brasil, duas em cada três pessoas ocupadas no campo trabalham na agricultura familiar. (Foto: Plato Terentev)

A terceira tendência é totalmente disruptiva à medida que representa um modo de produzir alimentos que se desvincula da natureza. Isso já é uma realidade, disponível na prateleira de muitos supermercados e cadeias de restaurantes no Brasil, principalmente na forma de carne vegetal, como hambúrguer, frango, porco, salsichas, carne moída e até bolinho de bacalhau! Testei todos, por curiosidade. Esses produtos estão cada vez mais parecidos com a carne, na textura e no sabor.

A evolução dessa tendência foi extremamente rápida desde a fundação, em 2009, da primeira foodtech do gênero nos Estados Unidos, com foco no combate às mudanças climáticas. Rápida também foi a proliferação de empresas e gama de carnes vegetais dentre as gigantes da indústria de alimentos processados. Não se trata de um nicho exclusivo às startups.

A comida artificial seria uma solução para os dilemas da produção sustentável de alimentos? É preciso avaliar esta opção com bastante cautela, dizem os especialistas. Não são apenas os potenciais efeitos adversos dos aditivos que dão cor, sabor, textura, tempo de prateleira aos produtos desta engenharia. Também é problemática a perspectiva de concentrar a produção de alimentos nas mãos de poucas empresas com tecnologias patenteadas.

Em 23 e 24 de setembro, as Nações Unidas realizaram a Cúpula de Sistemas Alimentares para coordenar ações globais que impulsionem a transição dos sistemas alimentares rumo à sustentabilidade. Todo o processo, desde os encontros preparatórios, foi marcado por polêmicas envolvendo os organizadores da Cúpula, grandes corporações que dominaram a agenda e um boicote parcial dos movimentos sociais ligados aos pequenos produtores rurais. As tensões refletem a encruzilhada em que nos encontramos. Está em discussão um dos sistemas mais importantes para a manutenção do bem-estar social. Contudo, não conseguimos nos entender e mudar a rota para evitar um futuro indigesto.

Urge definir um novo paradigma para os sistemas alimentares. No Brasil, a produção de alimentos é a atividade que mais impacta e mais é impactada pelas mudanças climáticas e as dinâmicas de poder econômico. Você tem muito poder nessa transição. Pode começar se perguntando: qual é o mix dessas três tendências na dieta da minha família, escola ou comunidade? como minhas escolhas impactam todo o sistema alimentar? como posso criar experiências que valorizem o esforço necessário para produzir os alimentos e cuidar do ambiente? Se essas reflexões levarem você a buscar novos caminhos para a produção e o consumo de alimentos que priorizem a saúde das pessoas e do planeta, reúna a galera, respire fundo e… mãos à obra.

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