O que Vila Sésamo e Frank Zappa nos ensinam sobre as mídias?
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O músico experimental norte-americano Frank Zappa era conhecido pela língua afiada e humor ácido – e também por ser uma espécie de “paradoxo ambulante”. Na década de 1980, deixava claro o desprezo que nutria pela televisão; em uma foto célebre, conectou um aparelho de TV à descarga de um vaso sanitário. Ao mesmo tempo, dava entrevistas bem humoradas a programas televisivos, chegando até a apresentar alguns deles, como o humorístico Saturday Night Live. Esse amor/ ódio representou a voz de toda uma geração que respirava os ares críticos da Escola de Frankfurt, com relação à cultura de massa e comunicação popular, cristalizada na programação televisiva. Mas também não conseguia se livrar dela.
A mesma televisão foi por décadas a protagonista da típica “dr” (discussão da relação) sobre o tempo gasto em frente às telas, sobretudo no período de férias, protagonizada por família e filhos. Os adultos se desdobravam para tirar as crianças da frente da TV enquanto esses se esbaldavam na programação como “se não houvesse amanhã”.
Hoje, pouco mudou. A mesma discussão acalorada tem o foco nos telefones celulares e videogames. Em suma, a “dr” de férias ainda representa, de maneira subjacente, um conflito não resolvido: qual linha fina separa o entretenimento da educação? O debate é também essencial à terceira geração de paradigmas recorrentes na educação midiática (considerando a primeira ligada ao rádio, a segunda à TV e a terceira às mídias digitais e inteligência artificial).

Nesse sentido, é importante considerar que as férias podem tornar-se um período importante e estratégico para desfibrarmos o maniqueísmo pouco eficaz que coloca as mídias de um lado e a edução de outro.
Em primeiro lugar, a escola teve por muito tempo um papel central em deslegitimar a televisão. Muitos educadores preferiam defenestrá-la a unir-se a ela. Nem mesmo nosso fundamental Paulo Freire foi muito generoso com a TV – se aproximou mais explicitamente do binômio educação/comunicação somente no fim de sua vida. A “fenestra sinistra” foi por décadas vista como inimiga da aprendizagem, um aparelho que estimulava a passividade com relação ao consumo de informação inútil.
Mas, examinando a linha do tempo, houve um ponto fora da curva, que ajudou a colocar a televisão em um outro patamar frente à educação. O programa Infantil Vila Sésamo estreou em 1969 fruto de um encontro improvável: pesquisadores de educação e psicologia da Universidade de Harvard (Estados Unidos) uniram-se a profissionais do entretenimento, mais precisamente Jim Henson e sua equipe, que havia criado os Muppets.
As ambições não eram pequenas: melhorar o desenvolvimento de crianças na primeira infância que muitas vezes não tinham condições de frequentar ambientes de educação formal. O programa nasceu estrategicamente pensado para, ao engajar a parcela mais vulnerável da população, valorizar a diversidade cultural, a aprendizagem lúdica e o desenvolvimento psicológico na primeira infância.
Os feitos mais visíveis foram muitos: há inúmeros estudos que mostram os impactos positivos de Vila Sésamo em toda uma geração; o programa existe como uma franquia educativa até hoje, passando por 120 países e levando inúmeros prêmios Emmy, para não mencionar outros.
Entretanto, as conquistas menos explícitas são as mais interessantes. A mudança mais significativa provocada pelo programa foi permitir que, pela primeira vez, a televisão passasse a ser “levada a sério”. Sim, ela poderia educar. Como consequência, Vila Sésamo abriu as portas para a programação infantil de qualidade que temos hoje, inspirou o termo “edutainment” que coloca o entretenimento a serviço da aprendizagem, além de estimular diversos acadêmicos a relativizarem as torres de marfim das universidades e se misturarem a quem produz mídia (o renomado bibliófilo mexicano Guilhermo Orozco resolver arriscar-se em Harvard inspirado por Vila Sésamo).
De certa maneira, a série moldou a programação dos serviços públicos de radiodifusão como a PBS (nos Estados Unidos), a BBC (no Reino Unido) e a TV Cultura (no Brasil).

Num olhar mais profundo, o programa deu verdadeiro sentido ao que chamamos hoje de educação informal. Isso porque ousou valorizar a cultura pop frente aos processos de aprendizagem, um caminho que se seguiu posteriormente com os “games”, “gibitecas” e atualmente com as séries entaladas do Netflix. Ou seja, o exercício sarcástico de Frank Zappa e a o casamento improvável nas parcerias para a criação de Vila Sésamo ajudariam a forjar a aprendizagem pelas mídias, incorporando-as como elemento de linguagem.
Mas o que podemos aprender com o arco narrativo da relação da TV com a educação? O principal é as mídias podem educar e, em outra frente, serem o próprio objetivo de aprendizagem de uma produção crítica. Em outras palavras, em tempos de mídias digitais, ainda tendemos a encarar a educação midiática como algo exclusivo da escola. E se as plataformas digitais também promovessem a educação midiática durante seu uso?
O debate foi colocado recentemente em pauta na UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) em um esforço de diversos atores sociais, incluindo entidades de regulação europeias e diretores de “big techs”, como o WhatsApp, no sentido de encontrar caminhos para uma educação midiática feita por meio das mídias digitais.
O sonho maior por trás desse pequeno avanço é que educação midiática se dissolva na cultura cotidiana. Aprenderíamos “com” e “para” as mídias na televisão, nas plataformas digitais, no rádio e na mídia impressa. Para que se concretize, deve tornar-se um esforço social coletivo, liderado pela família, bibliotecas, escolas, museus, governos e empresas de tecnologia. É um momento de gestação do “Vila Sésamo da educação midiática”.