Artigo: Entre o céu, a terra e a própria consciência

Entre o céu, a terra e a própria consciência

“Nós seguramos o céu para que ele não caia nas nossas cabeças,” disse Samela Sateré-Mawé ao dirigir-se na sexta-feira (10) à Comissão de Meio Ambiente do Senado. Era mais um grito de indignação, na tentativa de abrir os olhos dos congressistas brasileiros para o alerta vermelho embutido no último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), razão pela qual todos estavam reunidos.

Você deve ter visto nas redes sociais o vídeo da ativista sueca Greta Thunberg, que discursou no mesmo evento. Chama atenção como uma nova geração de ativistas do clima tem se  congregado globalmente, referendando uma pluralidade de manifestações, que representam diferentes identidades e experiências de vida dos jovens. Juntas, Samela e Greta, cada uma a seu modo, ecoam a voz dos povos originários em defensa de seus territórios.

Suspender o céu, segundo a tradição indígena, é cuidar da terra e reconectar um povo com todos os outros seres vivos.

Livros do xamã ianomâmi, Davi Kopenawa (A Queda do Céu, 2015), e de Ailton Krenak (Ideias para Adiar o Fim do Mundo, 2019) viraram best-seller ao revelar uma forma de se entender no mundo que recoloca o sujeito como parte da fina lâmina que conecta o céu e Terra, e que convencionamos chamar de biosfera. É nessa camada de 10.000 km em torno do planeta que a vida acontece. E também é nessa camada que os graves problemas ambientais que ameaçam a nossa existência podem ser resolvidos.

A base de uma árvore aparece em primeiro plano. Ao fundo, folhas bem verdes.
A área ocupada pela agropecuária domina 65% da Mata Atlântica. (Foto: Mali Maeder)

O paradigma antropocêntrico agora se confronta com uma realidade inevitável: alteramos a biosfera numa escala gigantesca sem entender toda a sua complexidade. A todo momento descobrimos novas interações entre árvores, fogo, chuva, ventos, microrganismos, espécies e fertilidade do solo. Embora a engenharia reversa (ou a regeneração) seja possível em alguns casos, o estrago é tão colossal que requer acordos políticos globais e compromissos de longo prazo com a execução dos combinados. Tudo isso nos coloca num recorrente estado de incerteza sobre as coisas básicas da vida.

Vai ter apagão? O feijão vai aumentar? A encosta pode deslizar no próximo verão? Estamos preparados para novos patógenos?

Há 60 anos, a tecnologia mudou nossa visão do planeta, ao colocar o astronauta russo, Yuri Gagárin, numa órbita completa ao redor da Terra. De lá pra cá, a democratização de dados, redes de internet e aparelhos que colocam todo tipo de informação na palma de nossas mãos representam uma oportunidade para mudar radicalmente a maneira como intervimos na paisagem.

O Brasil pode se orgulhar de ter o mais detalhado mapeamento das transformações do território nos últimos 35 anos, em quadradinhos de 30 metros e com múltiplas camadas de informação. Neste mês de setembro a plataforma Mapbiomas mostrou que a área ocupada pela agropecuária no Brasil aumentou em 45% desde 1985, passando a dominar 65% da Mata Atlântica, 46% do Pampa, 44% do Cerrado, 35% da Caatinga, 16% no Pantanal e 15% da Amazônia.

Por outro lado, o país que depende da agricultura para ver sua economia girar está perdendo água. Em média, a redução da superfície da água em todo o território foi de 15%. Mas, em estados como Mato Grosso do Sul, o encolhimento foi escandaloso: 57%. Imagine quanta gente está se perguntando: cadê a água que estava aqui? Isso sem falar no impacto para animais silvestres que, após os incêndios que consumiram quase 30% do Pantanal no ano passado, passaram por uma fase aguda de fome e escassez de água nas áreas mais agredidas pelo fogo.

Imagem mostra uma pequena queda d'água ao fundo e o rio.
A redução da superfície da água em todo o território nacional foi de 15%. (Foto: Diego Madrigal)

Em abril passado, o Google Earth lançou o recurso time-lapse, que permite ver as imagens de satélite ano a ano em vídeo, numa linha do tempo que vai de 1984 a 2020. Veja o vídeo do Parque Indígena do Xingu, a primeira grande Terra Indígena demarcada pelo Governo Federal, 60 anos atrás. Esse passeio pelo tempo-espaço do Alto Xingu mostra os limites do Parque funcionando como barreiras para o avanço do desmatamento e explicam porque demarcar terras indígenas é a maneira mais rápida, justa e sustentável de conservar florestas. Que mentalidade é essa que trata de forma tão radicalmente diferente a paisagem?

Fora dessas ilhas de floresta, a onda de desmatamento avança em direção ao interior da região amazônica. A oeste, na Bacia Hidrográfica do Tapajós, o filme se repete. O desmatamento desenha os limites da Floresta Nacional do Tapajós, uma unidade de conservação criada em 1974, onde residem indígenas da etnia Munduruku e 23 comunidades, com cerca de 4 mil moradores. Ali, as pressões sobre a floresta são de muitas ordens: a expansão para o norte do cultivo de soja; rodovias que interligam a região (com a confluência da BR163 com a Transamazônica, que cortam a região de norte a sul e de leste a oeste) e projetos hidrelétricos, que têm impactos significativos sobre as pessoas e a floresta.

Não estamos de mãos atadas e tampouco de mãos vazias para mudar o estado das coisas. Somos os beneficiários de uma rica história de desenvolvimento científico e práticas de conservação bem conhecidas e documentadas.

Além disso, as ilhas de floresta indígenas congregam povos e comunidades que, em sua grande maioria, não vivem isolados. Eles se aventuram na modernidade. Só que é uma modernidade diferente, que não abre mão da conexão com o ambiente. Devemos nos organizar para discutir os problemas socioambientais, mas também temos que colocar a mão na massa para resolvê-los. Podemos suspender o céu juntos com mais empatia e solidariedade porque como também diz Samela Saterê-Mawé “somos coletivo; e tudo o que acontece no nosso território tem consequências na terra de vocês, no estado de vocês, no lugar de vocês".

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