Artigo: A cultura digital e a explosão da narrativa

A cultura digital e a explosão da narrativa

Muita informação, pouca compreensão. O que chamamos de desinformação, e que vivemos hoje significa, na essência, um embate de narrativas e fontes.

Por exemplo, quando a ciência é encurralada, como no caso dos grupos anti-vacinação, ou a democracia é colocada em xeque, como os ataques às instituições que a sustentam, são as estruturas narrativas (a maneira com que as histórias são contadas) e as fontes (quem conta a história ou aqueles que fornecem dados a ela) que acabam por disputar a atenção do leitor. Quem convence mais é curtido, compartilhado e repassado; com o crescimento geométrico (ou exponencial), muitas vezes o estrago social se consolida. Verdades se tornam mentiras, ou vice-versa; meias-verdades podem tornar-se absolutas e imbecilidades adquirem potencial devastador de uma bomba H.

Torna-se evidente que a narrativa necessita de uma atenção especial nos ambientes de educação, seja a escola, a família, bibliotecas ou a própria mídia. É importante que nos debrucemos sobre como a oralidade, a escrita e a cultura digital construíram pedra por pedra a história da humanidade como conhecemos, seja perpetuando preconceitos ou iluminando veredas. Investigar e inventar o ato de contar histórias e suas linguagens devem ser centrais na chamada educação midiática.

Isso porque a cultura digital tem grande responsabilidade na confusão informacional que vivemos, e não somente em sua última fase de “fake news”. O filósofo Pierre Levy, que nos ajudou a reconhecer fenômenos como a inteligência coletiva, coloca o “hyperlink” como o mais importante marco de desconstrução das histórias. (que foi criado em 1965, mas popularizado na década de 1990).

Depois de 30 anos, o hyperlink não impressiona mais ninguém. Mas devemos recordar: ele possibilitou a explícita quebra da narrativa linear, abrigando histórias paralelas, ambientes simultâneos e levando o leitor-internauta a decidir qual caminho traçar. “Aprofundo essa informação clicando nesse link, ou sigo lendo minha reportagem?”, são dúvidas que ainda perduram.

Duas mãos seguram um telefone celular. Uma das mãos aponta pra algo na tela. ASo fundo, um laptop.
A cultura digital e a explosão da narrativa

Experiências em colocar o leitor como um participante no comando da narrativa eram raras antes do desenvolvimento da internet. Uma das mais interessantes foi a coleção de livros “Escolha sua Aventura”, muito popular nos anos de 1980. Nela, histórias fantásticas e de terror poderiam ter desfechos diferentes de acordo com as páginas para as quais o leitor era direcionado – se ele quisesse que o navio pirata afundasse, pularia para a página 107; para um combate naval, iria para a 102, por exemplo. Uma experiência analógica de hyperlink.

Outro caso de narrativas paralelas pré-internet foi a dos guias e mapas urbanos Access, desenvolvida pelo arquiteto norte-americano Richard Wurman. As cidades eram exploradas em duas dimensões como um mapa tradicional; mas museus, bibliotecas, parques e outras atrações ganhavam “caixas” em três dimensões com informações de acervo, horário de funcionamento para quem desejasse se aprofundar. Tudo em papel.

O jornalismo e o cinema também exploraram propositalmente (e muitas vezes, pedagogicamente) a mistura de narrativas. Há cinquenta anos (1971), o jornalista norte-americano Hunter Thompson publicava “Medo e Delírio em Las Vegas”. O que era para ser a cobertura de uma corrida de motos no estado de Nevada, Estados Unidos, tornou-se a narrativa da experiência psicodélica do autor indo de carro conversível ao evento e descobrindo, de forma pouco ortodoxa, os novos parâmetros do “sonho americano”. A experiência do autor passara a valer mais que o objeto do jornalismo – o que foi chamado posteriormente de “jornalismo gonzo”, brinca propositalmente com os limites da objetividade. No final das contas, da verdade.

Mas na internet algo novo surgiu: milhões de autores publicando instantaneamente e buscando relevância. As histórias ficcionais começaram a se embaralhar de maneira pouco clara com as jornalísticas, baseada em fatos. Isso não foi propriamente uma novidade; mitos, lendas e crenças sempre embalaram a vida das civilizações. Mas em tempos de a ciência desenvolvida a passos cada vez mais largos, supreendentemente o que poderia ser uma experiência interessante têm se tornado um fenômeno que aniquila igualdades e direitos. A estrutura narrativa explodiu de vez. Inclusive o jornalismo profissional, feito com qualidade, deixou de ser o fiel da balança.

Para piorar, no mundo cada vez mais obscuro das redes sociais, histórias ganham destaque por meio da seleção de algoritmos cuja opacidade de funcionamento pioram mais essa confusão. Não sabemos quem os rege, nem os pesos de suas decisões.

Entender como se constrói uma história, de que maneira ela dialoga com dados da realidade, o que são fontes confiáveis de informação (sobretudo as primárias, aquelas de origem dos dados), as linguagens, finais possíveis e como podemos de fato interferir nelas são exercícios diários. Podem ser feitos em casa, comentando os programas do Canal Futura entre a família, na comunidade, debatendo as adaptações dos quadrinhos para o cinema e, é claro, nas aulas de línguas da escola. Se construímos histórias diariamente, estamos aptos a também desconstruí-las para compreendê-las melhor. Assim, podemos recolher os cacos da explosão da narrativa linear.

O cenário do próximo estágio das guerras de narrativas chama-se metaverso e já em curso. Como das outras vezes, trará oportunidades de uma inovação ainda maior na linguagem e estruturas das histórias (imagine viver os contos de Machado de Assis em realidade imersiva e interagir com os personagens?). Mas os riscos de ampliar o fosso entre quem compreende ou não a distância entre ficção e realidade também crescerão.

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