Artigo: Pelo direito de sonhar 

Negra, mulher e periférica. Somos 27,8% da população e o que o mundo reserva para nós? 

Segundo dados do IPEA e do IBGE, 45% dos lares são chefiados por mulheres, sendo 63% deles chefiados por mulheres negras que estão abaixo da linha da pobreza. Como diz Emicida, “Luta diária, fio da navalha, marcas? Várias; Senzalas, cesárias, cicatrizes.” Para mulheres que “nascem pra luta”, será que há espaço para sonhar?  

Quando eu era pequena eu disse à minha mãe que queria ser estilista e ela disse que isso não era profissão pra gente. Naquele momento eu percebi que existia um “a gente” e um “eles” e que romper essa barreira seria um trabalho. 

Os alisamentos no cabelo representavam a necessidade de se encaixar, de se identificar. 

As notas altas na escola e todo esforço para ser a melhor aluna do bimestre representavam a oportunidade de ser vista. Para uma menina que se sentia invisibilizada, o sonho do reconhecimento era a chancela para que eu passasse a acreditar que o mundo era meu também. 

Uns anos depois veio a universidade e uma nova fala “melhor não estudar lá, porque você não é como eles e vai sofrer.” Novamente o mundo me mostrava que não era mais apenas sobre o cabelo, o curso de inglês, a bolsa na escola e as roupas parceladas, era sobre limites. Limites que são impostos e que nos propõem um desafio de se manter humano enquanto tudo nos desumaniza. Aprendemos a lutar mais, a acordar mais cedo, a correr, a viver sem analgésico, a sorrir e a se calar. 

Eduarda Vieira
Eduarda Vieira é Jornalista, especialista em gestão de projetos (FGV- RJ) e pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global (PUC-RS).

As coisas começaram a mudar no dia que eu li a seguinte frase: “o seu lugar é o lugar em que você sonha em estar”. Quem disse isso foi o Lázaro Ramos em seu livro “Na minha pele”. Ali eu entendi que existiam dois mundos sim, mas que existia também a ancestralidade e todos aqueles que lutaram e lutavam para que um dia a gente parasse de lutar, para que existisse a fresta do sonho. 

Nunca me sonharam para ser o que eu sou e essa história não é sobre superação ou meritocracia, é exatamente sobre o contrário. É sobre a fresta do sonho, a estratégia de garrinchamento, como diz Luiz Antonio Simas, é sobre o drible, é sobre ter outras vozes ecoando e te embalando. É sobre pontes. 

Eu escolhi a luta por direitos para que o sonho seja possível, para que novas narrativas impactem pessoas e para que a nossa existência seja válida e humana. 

Para isso eu dou a mão aos meus irmãos, que me ajudam quando tudo parece difícil, me inspiram quando tudo parece árido. Hoje a gente já se vê, já se lê, já se projeta. Hoje temos Silvio Almeida, que tenho a sorte de chamar de amigo, Jurema Werneck, Lázaro Ramos, Flávia Oliveira, entre outros, que me inspiram e fazem eu ver que nunca mais será como antes. Além dos anônimos - conhecidos por nós - que nos acolhem. São Claudias, Brunas, Divas, Thaisas, Celys, Helenas, Marílias, Letícias, Freds, Teresas, Vanessas, Bias, Julianas, que nos fazem acreditar no sonho e na construção de um futuro onde não seja preciso mais resistir. Um futuro onde a gente possa deitar a cabeça no travesseiro e se sonhar. 

Eduarda Vieira é uma pessoa de pessoas. É jornalista com especialização em Gestão de Projetos pela FGV-RIO e pós-graduanda em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global pela PUCRS. Hoje, atua como diretora de cultura da Play 9, estúdio de conteúdo e formatos digitais, promovendo ações de responsabilidade social com foco em direitos humanos, diversidade e inclusão.

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